Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan e arquivo pessoal
Quando criança, a pesquisadora científica Gisele Picolo tinha um hábito um tanto curioso: enquanto ajudava a mãe no preparo do almoço, se divertia investigando os miúdos do frango para descobrir de onde vinha cada parte. “Queria saber como as coisas funcionavam, como os órgãos estavam ligados uns aos outros”, lembra. Curiosa sobre os porquês da natureza, ela sempre teve certeza de que seria cientista. Logo no início da graduação em Biologia, em 1994, embarcou em uma oportunidade de estágio no Instituto Butantan – onde conheceria seus maiores mentores, veria as filhas crescerem e passaria os próximos 30 anos se dedicando a melhorar a dor das pessoas.
Apesar da ansiedade para colocar em prática os aprendizados da faculdade, a primeira lição da então estudante foi longe das pipetas e dos tubos de ensaio. Seu orientador Osvaldo Brazil Sant'Anna, que na época era pesquisador do Laboratório de Imunogenética, a recebeu com um passeio pela história centenária do Instituto – e ninguém melhor para apresentá-la do que o bisneto de Vital Brazil, primeiro diretor do Butantan.
"Osvaldo me disse: 'Antes de te ensinar a ciência, eu preciso te ensinar a história deste lugar'. Foi assim que desenvolvi o amor que tenho até hoje por essa instituição"
Gisele e Osvaldo, seu primeiro mentor no Instituto Butantan
Pouco depois de concluir o estágio em imunologia, em 1995, Gisele se candidatou para outra vaga, desta vez no Laboratório de Fisiopatologia. Lá, foi orientado pela pesquisadora Yara Cury, que conduzia uma linha de estudo sobre dor e investigava novas moléculas com potencial analgésico, extraídas de venenos de animais. O tema rapidamente a conquistou, em especial pela oportunidade de trabalhar com comportamento animal – uma de suas maiores paixões – e pela possibilidade de impactar a saúde pública no futuro.
A partir daí, a vida acadêmica deslanchou: Gisele se formou em Biologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1996, fez mestrado em Patologia Experimental e Comparada na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em Farmacologia no Instituto de Ciências Biomédicas, também da USP. Em 2004, prestou concurso público e se tornou pesquisadora científica do Butantan. Mais tarde, em 2010, a evolução da sua linha de pesquisa deu origem ao Laboratório de Dor e Sinalização, que é dirigido por ela desde 2012.
"A Yara e o Osvaldo foram muito importantes na minha trajetória. Muito do que conquistei foi graças ao apoio e confiança que tive deles"
Gisele com sua orientadora Yara
Um dos objetos de estudo de maior prestígio e que gerou maior aprendizado para Gisele foi a crotalfina, proteína extraída do veneno da cascavel que demonstrava potente ação analgésica e poucos efeitos adversos em testes de laboratório. A molécula foi purificada e patenteada no início dos anos 2000, quando o Butantan criou seu primeiro Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID), o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT). Vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o centro previa uma associação entre pesquisadores e indústria farmacêutica, com o objetivo de desenvolver produtos inovadores para a saúde.
Como o conceito de inovação ainda era incipiente no Brasil e não havia regulamentação para desenvolvimento de novos medicamentos, não foi possível transformar a crotalfina em um produto. “Nós tentamos abrir caminhos e estabelecemos muitos diálogos com a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], com a indústria farmacêutica. Para mim, foi um aprendizado incrível de tentar desenvolver uma área ainda pouco estabelecida no país”, conta Gisele.
Ainda que não tenha conseguido avançar nessa frente, Gisele continuou investigando a crotalfina e os mecanismos por trás de sua ação terapêutica, e passou a trabalhar com variações da molécula original. Os esforços lhe renderam o 2º lugar no Prêmio de Inovação da 23ª Reunião Científica Anual do Butantan, em 2024.
A esperança é que, no futuro, seja possível desenvolver novos remédios para tratar a dor crônica, que sejam mais eficazes e com menos efeitos adversos do que os tratamentos convencionais – que podem causar problemas respiratórios, gastrointestinais e, em alguns casos, dependência. Para cumprir essa missão, Gisele já trabalhou com venenos de diversos animais, como aranhas, escorpiões, sapos e até anêmonas-do-mar.
Um dos estudos recentes com resultados promissores utiliza uma toxina do veneno de abelha no tratamento da dor crônica neuropática. "Temos demonstrado em laboratório que a toxina pode não apenas tratar a dor crônica como retardar em meses seu aparecimento. Atualmente, estamos desenvolvendo ensaios para avaliar se é possível não só retardar, mas também impedir que a dor crônica se instale", explica a pesquisadora. O trabalho foi premiado no ano passado durante o Congresso Europeu de Farmacologia, na Grécia.
Em diversos momentos, a vida pessoal e o trabalho de Gisele se cruzaram. Em meio à carreira dedicada ao estudo da dor crônica, a pesquisadora viveu por mais de oito anos com dores nas articulações que nunca tiveram uma causa explicada. De 2013 a 2021, mesmo visitando diferentes especialistas e fazendo todos os tipos de exame, não houve um diagnóstico conclusivo.
Na época, a cientista retomou os exercícios físicos e encontrou no pilates uma forma de amenizar as dores. Contudo, foi apenas durante a pandemia, em 2020, quando começou a fazer um curso sobre “O poder mental”, que conseguiu curar as dores por completo. “Comecei a praticar meditação, além dos exercícios, juntamente com outras práticas de mudança vibracional. Hoje, vejo que consigo ser uma pessoa melhor, com um conhecimento muito maior sobre mim e sobre a influência do emocional no meu corpo. Eu posso controlar as minhas ações, e não as dos outros; mas posso controlar a reação que a ação dos outros tem em mim”, conta.
Enquanto passava por esse processo, Gisele investigava, no trabalho, a influência do enriquecimento ambiental na sensibilidade e no controle da dor em animais. O estudo, que rendeu publicações no British Journal of Pharmacology e na revista Experimental Neurology, mostrou que modelos animais com nervos lesionados que cresciam em ambientes com enriquecimento ambiental não desenvolviam dor crônica, além de apresentarem menos ansiedade.
"A prática do enriquecimento ambiental consiste em oferecer estímulos e novidades para animais que vivem sob cuidados humanos. Nós mostramos que o bem-estar ajudava não só no controle da dor, mas também na preservação da fibra nervosa desses animais contra a degeneração", afirma a bióloga.
O trabalho fez parte do doutorado de sua aluna Louise Faggionato Kimura Vieira e foi selecionado entre os cinco melhores estudos de dor crônica do mundo durante o 6º Congresso Internacional de Dor Neuropática, na Suécia, em 2017.
Uma das melhores lembranças que a pesquisadora Gisele Picolo tem do Butantan é ver as filhas Lara e Julia – hoje com 19 e 15 anos, respectivamente – brincando na antiga creche do Instituto, que frequentaram nos primeiros anos de vida. A cientista trabalhava apenas a alguns metros de distância e conseguia estar presente para as pequenas diante de qualquer intercorrência, o que trazia tranquilidade para seu coração de mãe.
“Eu via minhas filhas brincando na terra, embaixo da jaboticabeira, no gramado... O mesmo amor que eu tenho pelo Butantan, elas também têm, porque carregam essas memórias”
Orgulhosa, Gisele se diz muito feliz pela parceria que tem com as filhas e pelas pessoas que elas se tornaram. Apesar dos desafios da carreira de pesquisa – profissão também escolhida pelo marido, com quem troca “figurinhas científicas” –, ela sempre se dedicou a passar tempo de qualidade com a família. "Os presentes de aniversário eram experiências, como viajar, descobrir lugares novos. Em um dos aniversários, levei-as para passear de balão", conta.
Gisele e família durante viagem na Itália
Um dos passatempos preferidos da bióloga, inclusive, é carimbar o passaporte. Entre congressos internacionais e temporadas de pesquisa no exterior, foi nas ruas de Roma, na Itália, que Gisele viveu sua viagem mais marcante. Lá, junto com a família, realizou o sonho da mãe de visitar a região onde sua avó materna nasceu e conhecer um pouco de suas origens.
Como cientista, Gisele acredita que o trabalho colaborativo é a lição mais valiosa. Dentro do laboratório dirigido por ela, os sorrisos compartilhados e as animadas celebrações pelas conquistas de cada um deixam clara a união da equipe. Para uma pesquisadora, a posição de orientadora transcende o profissional e a presenteia diariamente com relações de amizade para toda a vida.
“Quanto mais você tiver pessoas ao seu lado na caminhada, mais longe você vai e mais feliz você chega lá na frente”